segunda-feira, 20 de julho de 2009

O Desembarque do tecnobrega em Salvador

No início do ano quando deixei Brasília pra trás e voltei a Salvador para o meu último período de pesquisa percebia quando andava de ônibus pela cidade, passando por vizinhanças de bairros populares, ou mesmo em festas nos largos de Salvador que o tecnobrega, de diferentes maneiras, estava compondo a paisagem sonora da cidade... Ele estava nas letras adaptadas pelas bandas de forró cearense, e episodicamente ouvia da forma como eu o conhecia feito no Pará. No entanto, no último mês, tenho sentido a presença quase omnipresente do tecnobrega no mundo do comércio popular de música, e isso me deixou especialmente interessado, principalmente devido a minha pesquisa.É o som do camelô, do bar no bairro popular, é a menina que canta alto em casa e dá pra se ouvir da rua...

O tecnobrega, em termos gerais, é um gênero que descende de uma seleção de elementos oriundos de variações da música eletrônica como o dance e o house, combinados com elementos de diversas referências musicais cultivadas no Brasil e nas Guianas, e que, aos poucos, foi ganhando um padrão próprio em Belém, sob o nome de brega. Traçar um mapa do desenvolvimento das diversas combinações que tornaram possíveis a formação do brega é uma tarefa difícil. No entanto, talvez seja possível chamar a atenção para alguns elementos que são reconhecidos, entre distintos músicos e D.J.’s paraenses, como a base do brega. O padrão da percussão do brega é característica: é um compasso ajustado a uma longa tradição de dança de par, cultivada em Belém, e que, ao que tudo indica, é mais antigo que a música-brega. A percussão parece ser o resultado de um longo processo de adaptação da tradição de movimentos corporais dos festejos amazônicos[1], ao acervo de batidas resultantes da interpenetração de ritmos caribenhos e norte-americanos, dentro do qual o rebolado se tornou uma decorrência de um intenso movimento de joelhos, executados sobre um caminhado, seguindo uma passada do dois pra lá e um pra cá. A subordinação do padrão percussivo a esta tradição de dança do brega parece ser tão significativa que o desenvolvimento percussivo que marcou o desenvolvimento do brega, passando pelo brega cha-dun-dun e pelo brega pop (também conhecido por brega-calypso ou simplesmente calypso) chegando ao tecnobrega, ficou marcado, além de pela substituição dos instrumentos acústicos por sintetizadores, pela aceleração do padrão das batidas[2]. Assim, a tradição da dança de par pôde ser mantida, mesmo com a aceleração dos movimentos levada a efeito pelas gerações mais jovens.

Em Salvador, estou bastante curioso para saber como os soteropolitanos vão compreender o tecnobrega, um gênero que nasceu e cresceu estreitamente relacionado ao desenvolvimento de uma dança de par. Salvador nunca desenvolveu uma tradição sólida de dança de par, até onde sei... O forró e o arrocha, gêneros musicais ligados a uma dança de par cultivados em Salvador, não nasceram na cidade; são influências do mundo interiorano sobre a capital. A fortíssima tradição musical do samba, especialmente o samba duro e o samba de roda, e sua variante mais popular hoje, o pagode (em outros lugares conhecido por swinguêra), são danças calcadas sobre a dança individual solta. O gozo com a percepção do próprio movimento fundado sobre o rebolado e o movimento de ombros e cabeça, além do prazer de expor a diferenciação dos movimentos corporais para outros tem uma especial devoção em Salvador, o que ainda constitui alguma dificuldade para que nasça uma dança de par propriamente soteropolitana. Justamente por isso acredito que será pela via dos movimentos cultivados através do arrocha, dança de par hoje profundamente enraizada em Salvador, que o tecnobrega será primordialmente lido. Fico curioso com essa hipótese especialmente pelo fato de que o andamento do arrocha mais antigo é lento se comparado ao do tecnobrega, ainda que dê para perceber que variações do arrocha se mostrem crescentemente mais rápidos, alguns tomando a forma de novos gêneros como a pisadinha, que, por sua vez, mostra estrita ligação com o pagode.

O debate sobre os desdobramentos dos processos de aumento das ligações entre estados vizinhos, o interior e a capital, na Bahia, merece ser aprofundado, especialmente se considerarmos uma perspectiva comparativa com os resultados obtidos pelos estudos que se dedicaram aos processos de mestiçagem. A rotinização do axé music, e a emergência do pagode e do arrocha, além do sucesso dos forrós vindos do Ceará, mostra como o panorama do universo do lazer dançante se diferenciou significativamente, comparado a períodos anteriores. E a chegada do tecnobrega que hoje toca alto nos camelôs nos pontos de ônibus, nos pequenos bares dos bairros populares, no carro alto do emergente, nos prédios da classe média baixa e da classe média, penso, coloca para mim a pergunta de qual tipo de função afetiva o tecnobrega irá preencher em Salvador, considerando as suas tradições expressivas, novas e antigas... Ejunto com essa pergunta vem uma suspeita mas também uma outra pergunta... Qual o papel que a dança de par pode vir a ocupar com o tecnobrega nessa cidade? De ante mão não concordo com a idéia de que é um simples modismo. Até pelo que vi até agora nas observações para a minha pesquisa a idéia de modismo se mostra inconvincente para pensar os fenômenos recentes ligados ao mundo das expressões populares orientadas para um mercado de consumo de lazer e diversão. Qual o significado dessa “tomada de contato”, dessa incorporação, para as tradições de expressões dessa cidade e que tipo de rede social e de funções ligadas a essa rede está existindo? Fica a curiosidade...


[1] Essas informações estão de acordo com a teoria de formação da dança do brega de Marcelo Thiganá, dançarino, uma das pessoas responsáveis pela sitematização do tecnobrega como dança de salão.

[2] Segundo Tony Brasil, reconhecido como um dos primeiros D.J.’s a gravar brega sob a base do eletroritmo, a alteração na percussão do brega cha-cun-dum para o brega pop, destacadamente a partir dos álbuns de Roberto Villar, foi marcada pela alteração do padrão de velocidade das batidas que passou dos 148 b.p.m., para 166 b.p.m..

sábado, 13 de dezembro de 2008

Os destinos não-intencionados do amor à arte e ao folclore: Emília Biancardi e os grupos folclóricos nos anos 60 em Salvador.

Acabei de voltar de um entrevista com a professora e etnomusicóloga Emília Biancardi. O interesse em entrevistá-la surgiu de algumas entrevistas que fiz com percussionistas de Salvador que passaram por diversas bandas, que tocavam diferentes gêneros musicais, desde o samba-reggae, passando pelos estilos afro-cubanos e chegando ao recente pagode baiano (expresso pelo antigo Gerasamba, do qual uma parte importante dos integrantes se desligou para formar o É O TCHAN!, a Companhia do Pagode, o Harmonia do Samba, e mais recentemente Psirico, Fantasmão, Parangolé, dentre muitos outros). Chamou-me a atenção nessas entrevistas o fato de esses percussionistas (que são mais velhos) relatarem a situação de que parte de suas aprendizagens musicais terem sido realizadas em grupos folclóricos existentes nas escolas de Salvador nos anos 60. Ao perguntar quem organizava esses grupos folclóricos o nome veio: Emília Biancardi. (foto: Mestre Pastinha dando aula de capoeira em 1962 - fonte: http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/04/revista%20da%20bahia/Imagens/RB%2038%20aculturacao3.jpg).
Logo fiquei interessado em levantar informações sobre os grupos folclóricos e sobre a professora Biancardi. Já durante as entrevistas buscava uma relação provavelmente existente entre a formação musical de uma linhagem de percussionistas situados no mercado de música popular de Salvador, a existência desses grupos folclóricos e o trabalho realizado por intelectuais, ao tentarem sistematizar o folclore, e, no caso, o folclore baiano, como um domínio de saber dotado de um reconhecimento próprio. Na esteira de um interesse crescente dos sociólogos pela realização de uma sociologia dos intelectuais queria entender o quanto a paixão, a afeição e o gosto pelo povo desenvolvido por uma linhagem de intelectuais, teria tido efeitos não-intencionados na constituição de um mercado de bens de lazer e diversão (incluindo aí o turismo), que têm transformado o auto-entendimento das expressões de uma parte importante dos estratos negro-mestiços populares do Brasil, mas de Salvador em particular.

Com esses interesses, e um material de pesquisa que já me apontava essa direção fui ao encontro das informações sobre os grupos folclóricos e sobre a profª Emília Biancardi. Encontrei e comprei em um sebo de discos o LP de 68, com o nome do grupo folclórico, VIVABAHIA, gravado no Teatro Castro Alves; Procurei na internet e encontrei o blog da coleção de instrumentos tradicionais Emília Biancardi; quando vi esse blog pensei e temi que estava a procura de uma figura póstuma.

Para minha felicidade se tratava de uma figura vivíssima e grandemente atuante. Levantei alguns dados biográficos e fiz uma procura sobre a situação das instituições folclóricas de Salvador do período. Encontrei no blog um número de telefone, falei com uma das assistentes do projeto coordenado pela professora e no mesmo dia fui ao Pelourinho procurar a professora. Logo quando entro no casarão onde está situado o projeto - que visa instituir a coleção de instrumentos tradicionais de Emília Biancardi - encontro a própria. Aproximo-me, me apresento, falo rapidamente sobre a minha pesquisa e do meu interesse em entrevistá-la. A professora marca uma data para a entrevista e muito generosamente doa-me o seu livro Raízes Musicais da Bahia, livro dificílimo de ser encontrado, contendo informações fundamentais sobre as raízes folclóricas da música na Bahia. É importante lembrar que apesar de se falar tanto da musicalidade de Salvador e da Bahia, as pesquisas nessa área são paupérrimas.

Uma coisa que me chamou a atenção na figura da professora Biancardi foi o seu senso de civismo, de apaixonamento com o sentimento nacionalista, e sua visão republicana do mundo e do folclore. Filha de um
advogado soteropolitano mulato, e de uma paulista musicista, filha de Italianos (de uma família de músicos - os Biancardi) nasceu em Salvador, mas foi criada em Vitória da Conquista, uma das cidades mais importantes do interior da Bahia, localizada no Sudoeste do Estado. Travou contato com as manifestações populares ainda criança, vendo os Ternos de Reis de Conquista. E esse gosto se aprofundou com as visitas às festas populares de largo em Salvador, durante às férias. Nesses espaços viu muita capoeira, samba de roda, e expressões de devoção aos orixás.

Fez a iniciação ao piano com Dona Nair Borges de Azevedo, segundo Biancardi, a única professora de música de Conqusita nos anos 50. Ela teria iniciado todos os meninos e meninas, homens e mulheres no instrumento nesse período na cidade. A mãe da professora Emília, Dona Margarida, já tocava piano antes de sua filha nascer; no entanto, deixou de tocar e vendeu o instrumento quando um de seus filhos faleceu devido a uma doença. Dez anos depois, quando Emília Biancardi tinha 5 anos, depois de um pequeno acidente, abre-se uma possibilidade para que o cultivo do piano voltasse á casa dos Biancardi. Após uma queda, a pequena Emília vai ao colo de sua tia; ela ficaria teclando indiscriminadamente o piano que havia nessa casa, fazendo sua mãe reviver o desejo de retomar o seus estudos no instrumento, e ensiná-lo à filha. Com as aulas de Dona Nadir, e os exercícios em casa com a Mãe, Emília Biancardi sedimenta o seu desejo de se aperfeiçoar na música.

Quando o pai falece, por volta dos treze anos, Emília se muda com a mãe para Salvador, onde estuda na Escola de Música da Bahia. Freqüenta as aulas do Profºr Paulo Jatobá, filho do homem pioneiro na pesquisa etnomusicológica em Salvador, Pedro Jatobá, cuja pesquisa muito lamentavelmente se perdeu. Ao final, ela decide fazer o recente curso de etnomusicologia na Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro. Esse curso teve duração de três anos, consolidando sua aproximação com o folclore musical, permitindo-lhe um aprofundamento nas questões envolvendo a relação entre arte e ciências sociais.

Quando retornou do Rio de Janeiro, uma amiga de sua mãe, Célia Brandão, que ensinava canto orfeônico no ICEIA (colégio do ensino médio estadual) estava se aposentando. Emilia Biancardi era uma forte candidata a ocupar o seu lugar. Aqui vale um detalhe sobre a estrutura de distribuição do poder e de oportunidades vigente no período. Com o apoio de Célia Brandão dentro da escola, aliado à indicação do deputado parente da família Biancardi, Orlando Spíndola, Emília foi nomeada como professora de canto orfeônico do colégio ICEIA. Cargos do estado, incluindo o de professora normalista, eram distribuídos de acordo com a rede de dependências pessoais, incluindo as ligações entre as instituições educacionais e os políticos representantes do estado federativo. Não havia concurso público; vigia o instituto do "pistolão". E como toda instituição não era algo que existia por decisão individual. Era um padrão social de distribuição de recursos e oportunidades formado em um encadeamento social e geracional anterior e ainda vigente no período que Biancardi retorna do Rio. E sua família se valeu dele para inserí-la no emprego público. Esse padrão de distribuição de recursos estava em declínio; tanto que a geração de professores do estado da Bahia que entraram através dessa estrutura, segundo me relatou, foi a última. Com a formação em etnomusicologia, e o seu desejo já sedimentado de difundir o seu vínculo afetivo com o folclore, Biancardi propõe, dentro do ICEIA, uma mudança de rumos na disciplina de canto orfeônico. Não desejando ser apenas uma professora de piano, Biancardi, com recursos de sua mãe, propõe criar um grupo folclórico. Para se ter uma idéia do entusiasmo de Biancardi com a organização do grupo folclórico, e do apoio quase incondicional da mãe aos seus projetos, as primeiras roupas do grupo inspiradas no candomblé foram feitas a partir do jogo de cama de sua mãe, bordado em Richelieu.

O apaixonamento pelas tradições a fez lançar-se a tarefa de buscar o povo e aprender com ele suas expressões, para que pudesse transfigurar suas práticas em apresentações folclóricas e artísticas. Devemos lembrar que nesse momento não era fácil para uma mulher ser aceita como pessoa plenamente responsável por suas iniciativas. Ainda mais quando a coordenação de um projeto implicava, de um lado, uma alteração curricular significativa - a linha musical do canto orfeônico para uma orientação musical calcada na música folclórica - e o contato direto com pessoas pobres, negras, que eram associadas, pelos estratos médios, à avaliação de status de que eram pessoas toleráveis, mas inferiores, cultivadoras de práticas mal-vistas e possivelmente ligadas à ladrões e malandros (o que poderia significar um desvirtuamento dos parâmetros morais e amorosos). Biancardi tomou a inciativa de ir atrás de mestre Pastinha para aprender a tocar Berimbau e a jogar capoeira, em um Pelourinho que causava calafrios aos pais, região estigmatizada como morada de prostitutas e ladrões. O receio de que acontecesse algo com "Emilinha" - um desvirtuamento ou um crime - fez com que a mãe - meio impondo e meio propondo - sugerisse que Mestre Pastinha fosse lhe ensinar na própria casa onde moravam, que ficava perto do Instituto Normal onde lecionava. Essa atitude, como me relatou a própria Profª Biancardi, pode ser entendida como uma facilitação de sua mãe para que pudesse prosseguir seu projeto, já que a pressão social que poderia advir da frequência constante ao Pelourinho poderia inviabilizá-lo. As aulas eram pagas com a pensão recebida do marido falecido; e uma parte importante dessa pensão foi dedicada aos projetos de Emília Biancardi; tanto Emília como os alunos que freqüentavam o grupo folclórico tomaram aulas com Mestre Pastinha, para que as apresentações fossem construídas. E assim se deu com os primeiros indivíduos convidados que considerava portadores de folclore: Popó, responsável pelo Maculelê de Santo Amaro; Coleta de Omolu e Negão de Doni, responsáveis pelo Candomblé, Mestre Canapum, responsável pela puxada da rede e “Seo” Vavá, responsável pelo Rancho de Boi, pela Burrinha e pelo Baile Pastoril.

Essa aproximação deu-se a partir de um impulso na direção do apaixonamento com a possibilidade de apresentar e difundir o folclore na escola, como um espetáculo cênico. Parece-me que a concepção de folclore de Biancardi estava ligada a um dever de inculcação de determinados símbolos populares na formação das crianças, como parte do desenvolvimento humano direcionado à formação cívica e nacional mediado pela arte. E isto é um elemento importante que não se pode deixar de considerar. O interesse em se aproximar ainda mais das práticas populares, e aprofundar o seu conhecimento sobre elas, estava eivado de uma combinatória de interesses, formando uma configuração de percepções que também exercia um impacto sobre o entendimento das práticas populares dos próprios agentes que, aos olhos de Biancardi, eram portadores de folclore. (Foto de uma das crianças integrantes do projeto da Profª Biancardi tocando um pandeirão; na apresentação "Pandeirinhos e Pandeirolas na Marcha do Presépio" as roupas dialogam com universo dos ternos de Reis e do Candomblé/João da Ralé).

O ímpeto em cultivar e difundir um sentimento de afeição pelas expressões lúdicas populares estava marcado pelas funções afetivas cultivadas durante o processo de diferenciação de sua personalidade. Sem dúvida que os reiterados exercícios de piano realizados com sua mãe, os momentos de felicidade de presenciar os Ternos de Reis em Conquista e as festas populares de Salvador, com o pai, são eventos que ajudaram a constituir um padrão de avaliação moral do que era para ela a beleza de se estar no mundo, e de que concepção de arte e educação valia a pena lutar. E uma das funções afetivas que parece ter desempenhado um papel importante no vínculo de reforço da confiança emocional de Biancardi em relação a seus pais, especialmente sua mãe com quem conviveu mais tempo, e compartilhava o gosto de executar música, era o apaixonamento pela avaliação da beleza, da autenticidade e da criatividade de uma expressão.

E, sem saber, ela estava se colocando na encruzilhada de padrões simbólicos de elites que historicamente caminharam em constante tensão e complementaridade na história de constituição do Estado da Bahia. De um lado o humanismo-universalista dos sertanejos do Sudoeste baiano, desdenhosos das questões étnicas, liderados, muitas vezes, por elites formadas no protestantismo, especialmente batista, ainda que temperado com um catolicismo popular, e profundamente envolvidos com a discussão sobre a implantação de uma civilização anglo-francesa no sertão e em toda a Bahia. De outro, o hierarcalismo-particularista dos senhores de engenho do Recôncavo, das irmandades religiosas e dos traficantes e negociantes de Salvador, com uma larga experiência em compreender e dar importância à avaliação social das diferenças étnicas e aos padrões de integração social pela via das lógicas de confrarias. Estas últimas, o que inclui os candomblés, bem avessas a um tipo de ordem na qual a formação espiritual se desse pelo Estado no modelo republicano anglo-francês. Os grupos de Salvador e do Recôncavo baiano e colonial mostraram-se pouco envolvidos e pouco afeiçoados aos ideais republicanos e igualitários. Na configuração da primeira república, os agentes que compartilhavam desses ideiais tendiam a deixar de lado as questões étnicas, e também os privilégios das lideranças das diversas confrarias soteropolitanas. E um dos alvos para onde apontavam o seu ódio era o lugar e as imagens de mundo viventes no hábito das elites coloniais e provinciais baianas, fortemente vinculadas à Monarquia. Lembremos que a revolta dos Malês e a Conjuração Baiana, hoje tão celebradas como índice de luta dos baianos por ideais de liberdade e igualdade, foram plenamente esmagadas pelos opositores no momento em que surgiram. o processo de integração do Estado da Bahia têm sido um intricado, doloroso e complexo jogo de pressões entre o mundo interiorano e o mundo do Recôncavo e da capital.

O que desejo chamar a atenção é para o fato de que o folclore, como o entende Emília Biancardi, é uma prática de investigação e coleta de expressões dos estratos populares que está estreitamente conectada à função simbólica de avaliação da beleza, da autenticidade, e da criatividade, oriunda de uma cosmo-visão da arte sublime, que herdamos do mundo europeu. Muitos dos agentes que, aos olhos de Biancardi, eram portadores de Folclore, não encaravam as suas práticas lúdicas sob esse ponto de vista. A aproximação de Emília dos seus alunos através do grupo folclórico que ela cria, contribuiu enormemente para que esse modo de percepção fosse cultivado como parte do envolvimetno expressivo que ligava Emília aos seus alunos. Isso torna possível uma transformação do padrão de avaliação adotado pelos jovens aprendizes, ao formarem um conceito e um valor de suas heranças expressivas. De forma complementar, mas na direção contrária, a ampliação dos usos expressivos de instrumentos e práticas lúdicas aprendidas com indivíduos oriundos dos estratos populares, aumentava o acervo simbólico com que alimentava a paixão pela educação artística cênico-musical, e demarcava um saber mediante o qual podia se reconhecer o que era autenticamente uma expressão folclórica baiana.




(Foto de uma das crianças integrantes do projeto da Profª Biancardi, na apresentação Pandeirinhos e Pandeirolas na marcha do Presépio, no Pelourinho /João da Ralé)


Mas é preciso entender os caminhos pelos quais passam o folclore em Salvador que, em grande medida, foi dependente do caminho tomado pelo VIVABAHIA, o grupo parafolclórico de Biancardi nos anos 60. De um projeto inicialmente sustentado quase que inteiramente pelo vínculo familiar, e concretizado em uma instituição do ensino médio pública, em uma estrutura educacional baseada no projeto republicano de Anísio Teixeira, o prosseguimento do grupo folclórico será possível pelo vínculo estabelecido com os interesses do mundo do negócio turístico na cidade. Aqui começam as tensões entre os valores e funções cívicas e as do entretenimento. O sucesso alcançado pelo grupo Folclórico extrapola os limites da escola, despertando o interesse do Estado em divulgar a imagem da Bahia através do VIVABAHIA. O Estado, não pela escola, mas pelo turismo, se tornará o maior cliente do grupo nos anos 60. Com isso o VIVABAHIA fará turnês internacionais, levando meninos e meninas oriundos dos estratos pobres para a Europa e Estados Unidos, e colocando-os em contato com o universo do mercado cultural internacional, desencadeando uma mudança na estrutura das redes de oportunidades e da qualificação funcional das expressões vistas como folclóricas e como divertimentos populares que, sob o aprendizado de uma linguagem cênica, transformará, num caminho sem volta, a percepção desses jovens e das redes funcionais que ligavam as "periferias" de Salvador às redes locais, estaduais, nacionais e internacionais do mercado de bens culturais. Certamente Biancardi não criou toda a configuração que permitiu o estabelecimento desses trânsitos, pois outros eventos já apontavam a transformação do valor simbólico conferido às práticas lúdicas populares em Salvador. Mas, sem dúvida, o seu trabalho teve uma contribuição enorme nos rumos tomados por esse processo.

Essa foi uma transformação que certamente a Profª Emília não previu, e muito menos a desejou. Sua iniciativa desencadeou a inspiração para o surgimento de grupos folclóricos em outras escolas públicas, e fora delas também, tendo alcançado destaque, e parece que não à toa, o grupo da escola Duque de Caxias, na Liberdade. Se formou um jogo concorrencial, que envolvia tanto a honra de representar sua escola frente às outras quanto um conjunto de oportunidades financeiras novas ligadas a necessidade de diversos setores nascentes de serviços de lazer e turismo de se associarem a uma imagem da Bahia que os grupos folclóricos passavam a encarnar. Os grupos parafolclóricos, como se chamavam à época, se tornaram rapidamente grupos de apresentação que vendiam seus serviços ao Estado e ao universo de serviços turísticos de Salvador, concorrendo com o VIVABAHIA, que havia nascido cumprindo uma função de satisfação com o sentimento cívico e artístico. A pressão para a profissionalização das apresentações folclóricas atuou de maneira dura sobre as disposições de Emília Biancardi em continuar a frente do VIVABAHIA. Questões trabalhistas na justiça, e o desânimo com os rumos tomados pelo debate sobre o folclore em Salvador fazem com que ela aceite convites de seus antigos alunos, que se estabeleceram no exterior, para ministrar aulas em universidades dos Estados Unidos, passando 10 anos naquele país.

Isso não parece ter demovido de seu espírito o desejo de continuar a trabalhar com o folclore, de um ponto de vista de uma formação humanístico-nacionalista, dentro do processo de maturação dos indivíduos pela expressão cênico-musical. Dentro do seu projeto de implantação da coleção de instrumentos tradicionais Emília Biancardi ela continua o seu trabalho com crianças, atualmente como voluntária, elaborando espetáculos cênicos com crianças, ensinando-as as histórias do folclore baiano, e transmitindo seu vasto aprendizado cênico-musical. (abaixo há um exemplo do seu trabalho com as crianças em imagens que fiz quando visitei o seu projeto).

Talvez isso possa mais uma vez nos dar a oportunidade, que rotineiramente perdemos de discutir os rumos da educação nesse país, mas, em especial, no Estado da Bahia; deixou-se uma obra tão significativa correr por fora do potencial universalizador e equalizador da educação do Estado. Há perguntas que talvez nos devamos fazer como, por exemplo: quais as razões e os fatores pelos quais os rumos tomados pelas funções de uma sociedade de consumidores foram tão impactantes sobre o projeto de universalização da educação pública?





(ensaio de Emília Biancardi com as crianças do projeto de implementação de sua coleção de instrumentos tradicionais)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Introdução rústica

Bem, não sou um sujeito muito habilidoso com as introduções. E meio rústico que sou - e animado pelo impulso de compartilhar a minha experiência em bater cabeça com meus textos para expressar as relações entre fatos humanos que me sensibilizam - dou um golpe inicial nesse blog.

Desenvolvo uma pesquisa de doutorado em Sociologia que tem por tema mais evidente a música e as práticas de diversão que têm se formado em algumas periferias urbanas de cidades brasileiras nos últimos trinta anos. Estou especialmente interessado nos processos humanos a partir dos quais foram possíveis o surgimento do tecnobrega em Belém, do pagode em Salvador e do funk no Rio. Para levar a cabo esta pesquisa estou realizando pesquisa de campo. Além da pesquisa em jornais e livros tenho feito entrevistas com diferentes agentes nessas cidades, ligados a esses universos. A experiência que tenho aquirido nesse percurso foi o que me animou a criar este blog, a servir de laboratório para a escrita da minha tese... da relação entre esses fenômenos.