segunda-feira, 20 de julho de 2009

O Desembarque do tecnobrega em Salvador

No início do ano quando deixei Brasília pra trás e voltei a Salvador para o meu último período de pesquisa percebia quando andava de ônibus pela cidade, passando por vizinhanças de bairros populares, ou mesmo em festas nos largos de Salvador que o tecnobrega, de diferentes maneiras, estava compondo a paisagem sonora da cidade... Ele estava nas letras adaptadas pelas bandas de forró cearense, e episodicamente ouvia da forma como eu o conhecia feito no Pará. No entanto, no último mês, tenho sentido a presença quase omnipresente do tecnobrega no mundo do comércio popular de música, e isso me deixou especialmente interessado, principalmente devido a minha pesquisa.É o som do camelô, do bar no bairro popular, é a menina que canta alto em casa e dá pra se ouvir da rua...

O tecnobrega, em termos gerais, é um gênero que descende de uma seleção de elementos oriundos de variações da música eletrônica como o dance e o house, combinados com elementos de diversas referências musicais cultivadas no Brasil e nas Guianas, e que, aos poucos, foi ganhando um padrão próprio em Belém, sob o nome de brega. Traçar um mapa do desenvolvimento das diversas combinações que tornaram possíveis a formação do brega é uma tarefa difícil. No entanto, talvez seja possível chamar a atenção para alguns elementos que são reconhecidos, entre distintos músicos e D.J.’s paraenses, como a base do brega. O padrão da percussão do brega é característica: é um compasso ajustado a uma longa tradição de dança de par, cultivada em Belém, e que, ao que tudo indica, é mais antigo que a música-brega. A percussão parece ser o resultado de um longo processo de adaptação da tradição de movimentos corporais dos festejos amazônicos[1], ao acervo de batidas resultantes da interpenetração de ritmos caribenhos e norte-americanos, dentro do qual o rebolado se tornou uma decorrência de um intenso movimento de joelhos, executados sobre um caminhado, seguindo uma passada do dois pra lá e um pra cá. A subordinação do padrão percussivo a esta tradição de dança do brega parece ser tão significativa que o desenvolvimento percussivo que marcou o desenvolvimento do brega, passando pelo brega cha-dun-dun e pelo brega pop (também conhecido por brega-calypso ou simplesmente calypso) chegando ao tecnobrega, ficou marcado, além de pela substituição dos instrumentos acústicos por sintetizadores, pela aceleração do padrão das batidas[2]. Assim, a tradição da dança de par pôde ser mantida, mesmo com a aceleração dos movimentos levada a efeito pelas gerações mais jovens.

Em Salvador, estou bastante curioso para saber como os soteropolitanos vão compreender o tecnobrega, um gênero que nasceu e cresceu estreitamente relacionado ao desenvolvimento de uma dança de par. Salvador nunca desenvolveu uma tradição sólida de dança de par, até onde sei... O forró e o arrocha, gêneros musicais ligados a uma dança de par cultivados em Salvador, não nasceram na cidade; são influências do mundo interiorano sobre a capital. A fortíssima tradição musical do samba, especialmente o samba duro e o samba de roda, e sua variante mais popular hoje, o pagode (em outros lugares conhecido por swinguêra), são danças calcadas sobre a dança individual solta. O gozo com a percepção do próprio movimento fundado sobre o rebolado e o movimento de ombros e cabeça, além do prazer de expor a diferenciação dos movimentos corporais para outros tem uma especial devoção em Salvador, o que ainda constitui alguma dificuldade para que nasça uma dança de par propriamente soteropolitana. Justamente por isso acredito que será pela via dos movimentos cultivados através do arrocha, dança de par hoje profundamente enraizada em Salvador, que o tecnobrega será primordialmente lido. Fico curioso com essa hipótese especialmente pelo fato de que o andamento do arrocha mais antigo é lento se comparado ao do tecnobrega, ainda que dê para perceber que variações do arrocha se mostrem crescentemente mais rápidos, alguns tomando a forma de novos gêneros como a pisadinha, que, por sua vez, mostra estrita ligação com o pagode.

O debate sobre os desdobramentos dos processos de aumento das ligações entre estados vizinhos, o interior e a capital, na Bahia, merece ser aprofundado, especialmente se considerarmos uma perspectiva comparativa com os resultados obtidos pelos estudos que se dedicaram aos processos de mestiçagem. A rotinização do axé music, e a emergência do pagode e do arrocha, além do sucesso dos forrós vindos do Ceará, mostra como o panorama do universo do lazer dançante se diferenciou significativamente, comparado a períodos anteriores. E a chegada do tecnobrega que hoje toca alto nos camelôs nos pontos de ônibus, nos pequenos bares dos bairros populares, no carro alto do emergente, nos prédios da classe média baixa e da classe média, penso, coloca para mim a pergunta de qual tipo de função afetiva o tecnobrega irá preencher em Salvador, considerando as suas tradições expressivas, novas e antigas... Ejunto com essa pergunta vem uma suspeita mas também uma outra pergunta... Qual o papel que a dança de par pode vir a ocupar com o tecnobrega nessa cidade? De ante mão não concordo com a idéia de que é um simples modismo. Até pelo que vi até agora nas observações para a minha pesquisa a idéia de modismo se mostra inconvincente para pensar os fenômenos recentes ligados ao mundo das expressões populares orientadas para um mercado de consumo de lazer e diversão. Qual o significado dessa “tomada de contato”, dessa incorporação, para as tradições de expressões dessa cidade e que tipo de rede social e de funções ligadas a essa rede está existindo? Fica a curiosidade...


[1] Essas informações estão de acordo com a teoria de formação da dança do brega de Marcelo Thiganá, dançarino, uma das pessoas responsáveis pela sitematização do tecnobrega como dança de salão.

[2] Segundo Tony Brasil, reconhecido como um dos primeiros D.J.’s a gravar brega sob a base do eletroritmo, a alteração na percussão do brega cha-cun-dum para o brega pop, destacadamente a partir dos álbuns de Roberto Villar, foi marcada pela alteração do padrão de velocidade das batidas que passou dos 148 b.p.m., para 166 b.p.m..